Nº. 247 – A “Sinfonia de Salmos”, de Stravinsky – 22 ago 82, p. 2

//Nº. 247 – A “Sinfonia de Salmos”, de Stravinsky – 22 ago 82, p. 2

Nº. 247 – A “Sinfonia de Salmos”, de Stravinsky – 22 ago 82, p. 2

Música – Nº. 247

A “Sinfonia de Salmos”, de Stravinsky

Rolando de Nassáu

 

Como partes da comemoração do centenário de nascimento de Igor Fedorovitch Stravinsky (1882-1971), duas importantes execuções: no próximo sábado, 10 de julho, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a “Sinfonia de Salmos”, com a Orquestra Sinfônica Brasileira e a Associação de Canto Coral, sob a regência de Victor Tevah, e, em 16 de outubro, no Teatro Nacional de Brasília, a “Missa”, com orquestra e coro regidos por Levino Ferreira de Alcântara (ver: artigo no. 243, “Do barroco ao cromofônico”).

Genial inventor de música moderna, Stravinsky realizou a mais longa (1910-1967) e a mais extraordinária carreira de epígono da história da música.

Símbolo da modernidade, Stravinsky fez a arte sacra retomar o seu lugar no panorama da música moderna.

Surpreendido, na Suíça, pela Revolução Socialista de 1917, viu-se afastado, por suas noções políticas, de seu país natal. Esse déracinement exerceu uma profunda influência sobre sua evolução: seu espírito se voltou cada vez mais para os problemas religiosos, para os interesses eternos e universais. Esse eslavo déraciné viveudecênios fora da Rússia (ver: Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977).

Em 1920 preconizou um retorno a Johann Sebastian Bach.

Sua música acabou sendo uma síntese muito rebuscada dos descobrimentos feitos pelos compositores medievais e barrocos.

Compositor essencialmente religioso, depois de 15 anos do início de sua carreira, com o “Pássaro de Fogo”, somente na tereceira fase (1920-1953) abordou um tema litúrgico. A partir da “Missa” a produção de Stravinsky no gênero sacro se tornou mais freqüente. No catálogo de obras religiosas de Stravinsky encontramos: Pater noster (1926), Symphonie de psaumes (1930), Credo (1932), Ave Maria (1934), Babel (1944), Missa (1948), Canticum sacrum ad honorem Sancti Marci nominis (1956), Threni (1958), Três sacrae cantiones (1959), A sermon, a narrative and a prayer (1961), The flood (1962), Abraham and Isaac (1963) e Requiem Cancles (1966).

Seu gênio prolífico, revelado nas duas décadas anteriores (1910-1930), alcança esplendor também na música religiosa, numa de suas mais belas criações, a “Sinfonia de Salmos”, que foi a primeira obra importante em que Stravinsky deu eloqüente expressão aos seus profundos sentimentos religiosos, e, por isso, dedicada “à glória de Deus”. Essa obra foi composta com o propósito de promover “uma comunhão com o nosso próximo e com o Supremo Ser”, o que indica claramente o significado espiritual que ele percebia na música, em geral, e na música religiosa, em particular (ver: Igor Stravinsky, Poetics of Music. New York: 1956).

Após a morte de Sergei Diaghilev, em 1929, penetrou na meditação. Logo depois recebeu um pedido de Sergei Koussevitsky para compor uma obra em celebração do cinqüentenário de fundação da orquestra sinfônica de Boston. Stravinsky sonhava há muito tempo compor uma obra sinfônico-coral. Quis fazer “algo universalmente admirado”, por isso escolheu o Saltério. Desejava reagir contra os numerosos compositores que usaram os salmos para exprimir sua própria “sensibilidade” lírico-sentimental, fazendo-o de maneira bem diferente. Para ele, “Deus não deve ser louvado com música forte e rápida”.

A “Sinfonia de Salmos” foi composta em 1930 e revista em 1963. Sua primeira audição ocorreu em Bruxelas.

Esta “sinfonia” é menos uma sinfonia do que uma cantata sobre versículos do Saltério. Não se encontra na composição musical concordância semântica direta com o texto literário. O conteúdo musical se distancia do sentido literal dos textos.

A música abrange uma generalidade de significação para os vários textos. A voz humana é colocada sobre o mesmo plano em que está a música instrumental.

Ao escolher na Vulgata três dos salmos (38:13-14; 39: 2-4; 150, que correspondem nas edições protestantes aos salmos 39:12-13; 40:1-3; 150), referia-se à relação do homem com Deus, à luz do Velho Testamento: “Exaudi orationem meam, Domine” (Ouve a minha oração, Senhor), “Expectans expectavi Dominum” (Com paciência esperei no Senhor) e “Laudate Dominum” (Louvai ao Senhor).

A obra é compacta e concisa; dura apenas 21 minutos.

O prelúdio (4 minutos) é uma “Oração”, em linguagem veemente, de que participam uma orquestra contrapontística e um coro masculino homofônico.

“Ouve a minha oração, Senhor” (Salmo 39:12-13) foi composto num estado de ebulição religiosa. Não estava preocupado com a música bizantina, que dizem ter influenciado a composição da obra. Bizâncio foi uma fonte de cultura russa (ver: Rolando de Nassau, Introdução à Música Sacra). Stravinsky disse que, embora tenha sido considerado um músico russo, o pouco que sabia a respeito da música bizantina aprendeu com Egon Wellesz (ver: A History of Bizantine Music and Hymnography. Oxfor: 1949), mais de 20 anos depois de ter composto a “Sinfonia de Salmos”. O segundo movimento, “Ação de Graças”, que dura 7 minutos, é uma dupla fuga polifônica para vozes e instrumentos. “Com paciência esperei no Senhor” (Salmo 40:1-3) faz ostensivo uso do simbolismo musical. A fuga vocal representa o nível mais alto no simbolismo. O terceiro movimento, “Louvai ao Senhor” (Salmo 150), foi originalmente composto com as palavras eslavônicas Gospody pomiluy (Senhor, tende piedade!) e serve como apoteose da obra. O “Hino de Louvor”, que dura 10 minutos, é um allegro em que as emoções são sublimadas. O allegro foi inspirado por uma visão do carro de Elias subindo ao céu. Neste movimento conclusivo, Stravinsky teve a preocupação de distribuir, à sua maneira, os sons das sílabas, imitando a música polifônica primitiva (ver: Igor Stravinsky – Robert Craft, Dialogues and a Diary. New York: Doubleday, 1963).

O tom da salmodia, por vezes influenciado pelo cantochão, impõe sua marca à fatura melódica. O ritmo da sinfonia, típico de outras obras de Stravinsky, caracteriza a modernidade desta obra religiosa.

 

Nossos leitores cariocas terão oportunidade de conhecer uma genial criação da música moderna inspirada em poemas multiseculares do Saltério. Desejamos que tenham uma bela audição, e aos leitores de outras cidades recomendamos esta cantata de Stravinsky, da qual existem gravações regidas pelo próprio compositor.

(Publicado em “O Jornal Batista”, de 22 ago 82, p. 2).

 

2018-02-21T14:20:32+00:00 By |Obras musicais|