Cânone musical

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Cânone musical 2018-03-12T21:27:57+00:00

(seleção de obras de música, sacra e religiosa)

Em setembro de 1994, o ensaísta norte-americano Harold Bloom lançou seu livro “The Western Canon” (O Cânone Ocidental), fazendo uma lista dos 850 escritores que produziram os livros mais significativos da história da cultura do Ocidente.

Em nossa coluna de crítica musical em “O JORNAL BATISTA” publicamos, em três partes, nas edições de 12 e 26 de março, e de 09 de abril de 1995, nossa lista das obras mais importantes da música religiosa cristã; essa lista foi reproduzida nas 12 primeiras edições desta página eletrônica.

Uma lista das 50 obras que nos últimos 500 anos revolucionaram a música erudita ocidental começou a ser publicada, na edição de março de 1998, pela revista inglesa “Classic CD”.

Para tanto, ela convidou 10 de seus críticos para indicarem as obras de sua predileção. Na primeira parte da lista, no gênero religioso, apenas uma obra foi indicada: “Véperas” (1610), de Claudio Monteverdi.

É fácil verificar que antecipamos, em três anos, a idéia de publicar um cânone musical, e de incluir as “Véperas” de Monteverdi entre as obras “revolucionárias”.

Cânone é o padrão usado por nós para aferir o valor artístico de 24 obras musicais, desde a Idade Média até os nossos dias. Faremos aqui uma lista das 24 obras mais importantes da música religiosa cristã, tenham ou não destinação litúrgica.

 

* Antema “My heart is inditing” (Z-30, l685), de Henry Purcell (l659-l695)*

Mestre da capela real inglesa, Purcell desenvolveu o antema (ver: “Nassáu”, p.30), parecido com a cantata, no qual as passagens para solos vocais e execução instrumental têm precedência sobre as partes corais (“verse anthem”), porque na capela real estavam à sua disposição solistas vocais e instrumentais de excelente qualidade. O melhor antema de Purcell é “My heart is inditing”, composto para coro duplo a oito vozes, solistas e orquestra de cordas, e executado na coroação de James II, em l685, com texto baseado no Salmo 45 e em Isaías 49. Em Purcell, sente-se a espontaneidade da inspiração melódica.

* Cantata “Alles, was ihr tut mit Worten oder mit Werken” (BuxWV-4), de Dietrich Buxtehude (l637-l707)*

Durante 39 anos (l668-l707) foi organista da “Marienkirche”, em Lubeck, na região setentrional da Alemanha, onde predominava o protestantismo. Buxtehude criou em Lubeck as Abendmusiken (serenatas), realizadas duas vezes por ano, com representações teatrais, audições vocais e execuções orquestrais, para as quais o ingresso era pago. Nas serenatas, eram apresentadas cantatas, em sua forma primitiva, que serviram de modelo a J.S.Bach.

* “Gloria” (RV-589, 1713), de Antonio Vivaldi (1678-1741)*

Vivaldi foi, a partir de 1703, maestro do coro do Ospedale della Pietà, em Veneza, onde compôs muitas obras religiosas, de extrema variedade de forma e de expressão. O “Gloria”, RV-589 (que não deve ser confundido com o outro, RV-588) , é uma composição de 12 trechos, que dá maior participação aos instrumentos.

Composto para solistas (dois sopranos e contralto), coro misto, orquestra e órgão.

* Gradual “Locus iste” (1869), de Anton Bruckner (1824-1896)*

Composto para coro a quatro vozes, sem acompanhamento instrumental, pelo grande músico-de-igreja da época romântica, que não fez música pós-clássica (Schubert), nem arcaica (Palestrina), mas aspirava o misticismo medieval e a sensibilidade romântica (ver: Alfred Einstein, La musique romantique. Paris: Gallimard, 1959).

* Missa “Papae Marcelli” (l565), de Giovanni-Pierluigi da Palestrina (l525-l594)*

Mestre-de-capela dos papas Júlio III, Marcelo II, Paulo IV e Gregório XIII, Palestrina, tendo recebido a recomendação papal no sentido da simplicidade e da inteligibilidade na música polifônica da Igreja Católica, compôs esta missa, que serviu de modelo no Concílio de Trento.
Mais tarde, foi encarregado de reformar o repertório gregoriano. Esta, uma das 105 missas que compôs, mostra a absoluta perfeição de sua escritura polifônica, fluente, simples e clara, além de exibir a natural beleza da linha melódica, inteligível e reverente. Composta para seis vozes, sem acompanhamento instrumental; Francesco Soriano (1549-1621), aluno de Palestrina, fez um arranjo para coro duplo.

* Moteto “Planxit autem David” (1504), de Josquin des Prés (l440-1521)

Na música franco-flamenga do final do século XV e começos do século XVI, Josquin foi o príncipe da música pela habilidade contrapontística e pela inspiração melódica.

* Motetos “Prophetiae Sibyllarum” (l599), de Roland de Lassus (l532-l594)

Mestre-de-capela na Baviera, uma das cortes mais prestigiosas da Europa, Lassus viajou pela Itália e pelos Países-Baixos. Em sua obra o moteto latino não-litúrgico ocupa um lugar importante, sob a influência italiana (Palestrina) e flamenga (Josquin). Estes 12 motetos representam a união das duas correntes artísticas. Neles, Lassus faz combinações variadas de voz, ou rupturas inopinadas da linha melódica, antecipando-se à música erudita do século XX, na tessitura sucinta de cânticos caracterizados pelo cromatismo musical para criar efeitos expressivos.

* Moteto “Veni, Sancte Spiritus” (1431), de John Dunstable (l380-l453)

Provavelmente, foi entoado na coroação, em Paris, em 1431, do rei inglês Henry VI. No século XV, sua escritura polifônica é segura, seu senso harmônico é extraordinário e sua linha melódica é maravilhosa.

* Oratório “A Criação” (“The Creation” – “Die Schoepfung”, 1798), de Joseph Haydn (1732-1809).

Entre 1791 e 1795, em Londres, Haydn ouviu, entre diversas obras de Haendel, o oratório “Messias”. Durante dois anos trabalhou na elaboração do seu oratório bilíngue (inglês e alemão), marcado pelo humanismo, que acabou contribuindo para a secularização da música religiosa. Composto para três solistas (soprano, tenor e baixo), coro misto e orquestra.

* Oratório “As Bem-Aventuranças” (l879), de César Franck (l822-1890)

Malgrado suas fraquezas, comporta bela música, ao gosto romântico, por ter sido a fonte de suas aspirações (ver: Norbert Dufourcq, César Franck. Paris: 1949).

* Oratório “Cristo” (1873), de Franz Liszt (1811-1886)

Não é exatamente um oratório (ver: “Nassáu”, p. 133), tendo em vista a fluidez dos elementos narrativos ou líricos, sem encadeamento dramático. Liszt pretendeu reformar a música da Igreja Católica, tomando por base exclusiva o Canto Gregoriano, mas recebeu a oposição do Vaticano. Entretanto, Liszt ocupa um lugar importante na música religiosa européia.

* Oratório “Der Tag des Gerichts” (TVWV-6, 1762), de Georg-Philipp Telemann (1681-1767)

Telemann foi o mais prolífico compositor da história da música ocidental e anunciou na Alemanha o período clássico, mas sua obra religiosa ainda é barroca. Em 1702, ele fundou o Collegium Musicum de Leipzig, que organizou os primeiros concertos públicos na Alemanha (ver: Henry Raynor, A Social History of Music. London: Barrie-Jenkins, 1978). Em 1704, foi nomeado diretor de música da Neue Kirche, igreja da universidade de Leipzig; em 1708, em Eisenach, conheceu J.S.Bach. Em Frankfurt, começou a compor ciclos de cantatas sacras, o que mais tarde seria imitado por J.S.Bach. Em 1721 e 1722, candidatou-se, mas desistiu de tomar posse do cargo de diretor musical das igrejas de Hamburg e Leipzig. A partir de 1755, dedicou-se à composição de oratórios. Este, para soprano, contralto, tenor e baixo solistas, coro misto a quatro vozes e acompanhamento instrumental, é uma das obras mais significativas de Telemann.

* “Elias” (Opus 70, 1846), de Felix-Mendelssohn Bartholdy (1809-1847)

Influenciado por Haendel, é o mais importante oratório do século XIX.
Está comentado no “Nassáu – Dicionário de Música Evangélica” (pp.70 e 193).

* Oratório “Gólgota” (1948), de Frank Martin (1890-1974)

A música coral religiosa ocupa um lugar importante na obra de Martin. “Gólgota” é um oratório para comemorar a paixão de Cristo; é uma obra grandiosa, e, ao mesmo tempo, simples, por ter tomado como modelo a de J.S.Bach. Cada episódio dramático (extraído da Bíblia) é seguido de uma meditação (baseada em Santo Agostinho).
Composto para cinco solistas vocais, coro misto, orquestra sinfônica e órgão.

* Oratório “História da Natividade” (SWV-435,1664), de Heinrich Schuetz (l585-1672)

O maior compositor alemão do século XVII, Schuetz foi mestre-de-capela em Dresden (l6l7-1672). a mais importante das côrtes protestantes; aí compôs, entre muitas outras obras sacras, três “paixões” e o oratório de Natal, sua obra-prima. A “História da Natividade” foi composta para solistas, coro e acompanhamento instrumental; é obra original, sem qualquer precedente como modelo, baseada tão somente nos textos dos evangelistas Lucas e Mateus. Este curto oratório litúrgico (sua execução dura apenas 37 minutos) estreou em 25 de dezembro de 1664. quando Schuetz estava com 79 anos de idade. A instrumentação está relacionada com o caráter simbólico dos personagens. Schuetz assimilou técnicas de Giovanni Gabrieli (l557-1612) e Monteverdi (monodia, estilo concertante, escritura policoral) e abriu caminho para Johann Sebastian Bach.

* Oratório “Messias” (HWV-56, 1742), de Georg-Friedrich Haendel (1685-1759)

É o mais célebre. Entre 1742 e 1759, foi executado 36 vezes, nos últimos 17 anos de vida do compositor. Este oratório é comentado no “Nassáu – Dicionário de Música Evangélica”(pp.117, 191 e 192).

* “O Rei Daví” (1921), de Arthur Honegger (1892-1955)*

Distanciando-se de qualquer sistema de composição ou escola estética, mas admirador de Bach, contribuiu para o renascimento do oratório religioso no século XX. Em sua obra,Honegger teve o cuidado de ser acessível ao público.
René Morax escreveu um drama bíblico evocando a vida de Davi, que foi composto às pressas por Honegger. Em 11 de junho de 1921, apesar das imperfeições dos coristas e instrumentistas amadores, o oratório obteve sucesso. O texto e a partitura foram revistos em 1923, tornando-se um “salmo sinfônico”.
No oratório, Honegger trata de maneira concisa os elementos estruturais do gênero encontrados no século XVIII, particularmente no recitativo, que é falado, não cantado. Entre os 28 trechos da obra, geralmente curtos, oito são orquestrais; dos outros 20, que comportam uma parte cantada, dez são salmos e quatro são cânticos.
Composta para narrador, três solistas (soprano, contralto e tenor), coro misto, instrumentos de percussão e orquestra (que inclui piano, harmônio e celesta).

* “Paixão segundo São Lucas” (1965), de Krzysztof Penderecki (1933- )

O mais ilustre compositor polonês contemporâneo tem a mesma predileção (a música coral religiosa) do suíço Frank Martin, e o mesmo espírito ecumênico (o aproveitamento de obras ortodoxas, católicas e protestantes) do francês Arthur Honegger.
Em sua obra coral, as vozes recebem um tratamento quase instrumental; o coro se adapta à orquestra, e não comenta o drama.
Com esta “paixão”, Penderecki inaugura uma nova série e uma nova concepção de obras corais.
Nesta obra, os solistas representam os personagens e a participação orquestral é quase caótica.
Nela, são empregados o dodecafonismo e o cromatismo, elementos do Canto Gregoriano e técnicas vanguardistas, e imitado o modelo passional de J.S.Bach; pelo oratório passa o motivo B – A – C – H (si bemol – lá – dó – si).
Nos últimos 30 anos, não surgiu nada digno de nota. Em nossa opinião, por este cânone musical passam as 24 mais importantes obras da música religiosa cristã.

* “Paixão de Cristo, de acordo com São Mateus” (BWV-244, 1727, 1729 e 1736), de Johann Sebastian Bach (1685-1750)*

J.S.Bach foi o maior compositor de todos os tempos, por isso dividimos a história da música ocidental em duas partes: 1ª.) antes de Bach (1300-1700); 2ª.) depois de Bach (1750 até os nossos dias).
A partir de 1717, as autoridades eclesiásticas de Leipzig baixaram instruções litúrgicas a respeito da execução musical nas igrejas por ocasião da Semana Santa. Bach compôs, entre 1724 e 1736, três “paixões”, de acordo com os evangelistas João (BWV-245), Mateus (BWV-244) e Marcos (BWV-247) e conforme o padrão litúrgico. A de São Mateus, para ser executada por dois coros a quatro vozes, com acompanhamento instrumental; sua execução dura três horas. Esta “paixão” representa o clímax da música sacra.

* “Requiem” (Opus 89, 1891), de Antonin Dvorak (1841-1904)

Dvorak era muito piedoso e compôs música para a Igreja durante toda a sua vida. O “Requiem” foi composto para quatro solistas, coro misto e orquestra sinfônica, num panorama sonoro sombrio, como reflexão filosófica sobre o ser humano; o panorama é iluminado no “Agnus Dei”, que conclui a obra.

* “Requiem” (KV-626, 1791), de Wolfgang-Amadeus Mozart (1756-1791)*

A melhor obra no gênero, composta para quatro vozes solistas, coro e órgão.

A descoberta da arte de J.S.Bach marcou a sua música religiosa composta durante a adolescência, mas o “Requiem” tem sido fonte constante de polêmica entre os estetas, embora seja obra produzida na maturidade. O “Requiem”, no qual ele pressente uma nova sensibilidade musical a surgir no século seguinte, é uma das mais expressivas obras-primas de Mozart.

* “Um Requiem Alemão” (Opus 45, 1869), de Johannes Brahms (1833-1897)*

Composto para soprano e barítono solistas, coro misto a quatro vozes, orquestra e órgão. Em Viena, a partir de 1862, Brahms, com algumas interrupções, dedicou-se novamente à música coral. No “Requiem”, ele expressa uma concepção trágica do seu pensamento, de maneira original, sem precedente na música alemã, e sem relação com a “missa de defuntos” da liturgia católica. É a contribuição de um luterano e de um alemão à música sacra ocidental, valendo-se da técnica clássica e da sensibilidade romântica (ver: Claude Rostand, Brahms. Paris: 1954).

* “Te Deum” (H-4l6, 1691), de Marc-Antoine Charpentier (1644-1704)*

A música religiosa de Charpentier, contendo mais de 500 obras e precedendo Bach por 40 anos, soa muito mais antiga. O “Te Deum”, composto para dois sopranos, dois contraltos, dois tenores e dois baixos solistas, coro e orquestra, é uma das obras mais celebradas.

* Vésperas “Vespro della Beata Vergine” (1610), de Claudio Monteverdi (1567-1643)*

No século XVI, Monteverdi ainda mostrava-se atraído pelas formas tradicionais da polifonia (“prima prattica”), mas, no começo do século XVII, torna-se progressivamente adepto das formas barrocas (“secunda prattica”). Estas “Vésperas” (ver: “Nassáu”, pp.72 e 178), suíte de 14 trechos, têm discreto acompanhamento instrumental e subordinam a música ao texto poético. Monteverdi, experimentalmente, acomoda as estruturas modal e tonal; ousadamente, até certo ponto conserva o “stilo antico”, e inaugura o estilo concertante na música-de-igreja.