Nº. 731 – Barroco na Memorial (2) – 07 set 2008, p.

//Nº. 731 – Barroco na Memorial (2) – 07 set 2008, p.

Nº. 731 – Barroco na Memorial (2) – 07 set 2008, p.

 

Doc.JB-731

Barroco na Memorial (2)

Rolando de Nassáu

(Dedicado ao leitor Zaqueu Moreira de Oliveira, do Recife, PE)

“O concerto barroco entrou para a história da Memorial!” (ver: “O Jornal Batista”, 02 out 2005, p. 4).

Pela segunda vez, o “perSonare/ Studio Barroco” realizou um concerto no templo da Igreja Memorial Batista. À noite de 30 de março apresentou a cantata “Gottes Zeit ist die allerbest Zeit” (O tempo de Deus é o melhor tempo), BWV-106, também conhecida como “Actus Tragicus”, de J. S. Bach (1685-1750).

Esta cantata foi composta em Mühlhausen, em 1707, para soprano, contralto, tenor e baixo solistas, coro misto a quatro vozes, duas flautas doces, duas violas “da gamba” e baixo contínuo; trata-se de uma das primeiras cantatas de Bach; ele tinha apenas 22 anos de idade (ver: Hermann Schmalfuss, J. S. Bachs “Actus Tragicus”, 1970; Alfred Dürr, Die Kantaten von J. S. Bach. Kassel: Baren reiter, 1971; Walter Kolneder, Bach Lexikon. Lubbe, 1982).

No dizer de Robert Hill, no “Actus Tragicus” Bach lançou as sementes de sua obra coral, enquanto na “Arte da Fuga” colheu “os frutos de sua colheita” na música instrumental (ver: Robert Stephen Hill, Bach as Teacher. Bachakademia, vol. 107, 1999).

A música se caracteriza pela sonoridade em tom de confidência. O libreto anônimo, talvez escrito por Bach, inclui versículos do Antigo Testamento, do Evangelho segundo São Lucas e de um hino sobre a transformação da morte: da punição da Lei para a esperança da Graça. Sua execução dura 21 minutos.

As cantatas de Bach são consideradas como o acme da perfeição desta forma musical e o ponto culminante da música-de-igreja protestante. Esta opinião não era compartilhada pelos contemporâneos de Bach. No século XVIII, Georg Phillip Telemann (1681-1767) foi chamado de “pai da música-de-igreja”; o mais prolífico compositor da história da música, ele compôs mais de 1.400 cantatas, tendo o apoio do pastor Erdmann Neumeister (1671-1756), que, em alto e bom som, dizia ser a cantata “um fragmento da ópera” …

O “Actus Tragicus”, de Bach, conforma-se com a tradição musical, usando a Bíblia e hinos congregacionais, e revela um conteúdo teológico.

A cantata fúnebre de Telemann, “Du aber Daniel gehe hin” (Mas tu, Daniel, vai-te), composta em Hamburg, segue o padrão operístico, usando um texto bíblico (Daniel 12: 13), mas a interpretação do texto está menos preocupada com a concepção teológica a respeito da morte.

Há analogias entre essas duas cantatas fúnebres, entretanto, na de Bach é mais importante a teologia, orientando para o uso eclesiástico; na de Telemann, o drama despreza, sob a influência da ópera, a separação entre música sa cra e música profana. Preferimos a de Bach, por ser a mais apropriada ao culto.

Na execução dos oito trechos do “Actus Tragicus” atuaram, como solistas, a soprano Lívia Lavorente, a meio-soprano Malú Mestrinho, os tenores André Vidal e Kleyton Oliveira, e o baixo Alberto Almeida; do coro participaram as sopranos Tristana Rossi e Márcia Diniz, as meios-sopranos Mirella Cavalcante e Mônica Simões, e os baixos Mateus Ciucci e Josué Terceiro; no canto usaram o texto original em alemão.

O Estúdio Barroco compareceu com Sueli Helena (flauta doce), Cecilia Aprigliano (viola “da gamba”) e Ana Cecília Tavares (cravo), apoiados por Maria Eugênia Pulino (flauta doce), Iara Ungarelli e Tiago Ribeiro (violas da gamba).

A execução começou com a “Sonatina”; as flautas desenvolvem um “molto adagio” de caráter fúnebre e traduzem a serenidade do cristão frente a Morte. Na cantata há várias mudanças de tempo (incluindo o coro homófono e o coro fugado, o lento e o vivaz), no estilo do antigo moteto, que realçam três palavras-chaves: o tempo de Deus, viver e morrer.

O coro “Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit” no início se expressa com energia e alegria, mas no final declara gravemente: “In ihm sterben wir zu rech ter zeit” (Nele morreremos no tempo certo) – (Atos 17:28). O lento arioso do tenor, “Ach, Herr, lehre uns bedenken” (Ah! Senhor, ensina-nos a compreender) e a ária vivaz do baixo, “Bestelle dein Haus”(Prepara tua casa) confirmam a aceitação da morte (Salmo 90: 12; Isaías 38: 1).

O grupo vocal, com destaque da soprano, proclama a inevitabilidade da morte, “Es ist der alte Bunde” (Esta é a velha lei), mas o tom bachiano é diferente; Bach, homem da igreja, inscreve sua proposta, no tempo limitado pela liturgia luterana, como se fosse um sermão. Atento à pregação de Lutero, Bach não deixa que a dúvida se instale nas mentes da congregação; a soprano canta “Ja, komm, Herr Jesu!” (Sim, vem, Senhor Jesus); com estas palavras, extraídas do Apocalipse (22:20), Bach lembra ao crente que a segunda vinda de Jesus será a vitória sobre a Morte. Assim, estabelece a sã doutrina, ressaltada pelas flautas e violas, ao recordar a melodia do coral “Ich hab mein Sach’s Gott heimgestellt” (Entreguei a Deus as minhas preocupações).

O crente passa a ter uma lógica inteiramente diferente, ao ouvir o contralto e o baixo, acompanhados pelo cravo, cantarem a ária “In deine Hände befehle ich meinen Geist” (Em Tuas mãos entrego meu Espírito); no arioso “Heu te wirst du mit mir” (Hoje estarás comigo) cantam o baixo e os contraltos do coro, identificando a morte do crente com a de Cristo, enquanto os instrumentos de cordas sugerem a melodia do hino “Mit Fried und Freud” (Com paz e alegria).

A meditação de Bach sobre a morte do crente termina com uma doxologia coral-instrumental; não se trata de um louvor convencional; Bach a firma que o poder e a autoridade de Deus nos conferem, em nome de Cristo, um direito à vitória sobre a morte.

Revelamos aqui a nossa expectativa em relação ao segundo concerto barroco na Memorial. Conhecemos esta cantata desde 1976. Qual foi a nossa impressão? No conjunto, cantores e instrumentistas deram à cantata uma execução satisfatória, grangeando-lhes merecidos aplausos.

Na “sonatina” as flautas tiveram bom desempenho. No trecho “Got tes Zeit” os cantores foram bem do tom alegre ao grave.

O tenor ofereceu uma interpretação razoável no arioso “Ach, Herr, lehre uns bedenken”, mas faltou ao baixo maior potência vocal para dar mais energia à ária “Bestelle dein Haus”.

No trecho “Es ist der alte Bund”, o estilo musical barroco sugeria que o coro cantasse como se estivesse em movimento, “andante”, efeito a ser pro duzido pela orquestra que não percebemos.

A soprano Lívia Lavorente e a meio-soprano Malú Mestrinho foram convincentes, na frase “Ja, komm, Herr Jesu!” e na ária “In deine Hände”, respectivamente. No arioso “Heute” o baixo apresentou-se melhor, cantando com a firmeza adequada ao texto, enquanto os contraltos entoavam suavemente o coral “Mit Fried und Freud”, enfatizando mais a tranqüilidade do que a alegria.

No trecho conclusivo, o “perSonare” e o “Estúdio Barroco” nos deixaram com o ardente desejo de que voltem a se apresentar na Memorial.

 

(Publicado em “O Jornal Batista”, 07 set 2008, p. 4)

 

2018-02-21T14:48:49+00:00 By |Recitais e concertos|