Doc.JB-673
Rolando de Nassáu
Com o surgimento das primeiras obras polifônicas, os instrumentos musicais, além do órgão-de-tubos, passaram a ser usados na Igreja para reforçar ou substituir as vozes.
O manuscrito de Apt (século XIV) faz referência ao uso de instrumentos (orgue, vièle à archet, cornet à bouquin, sacqueboute) na corte papal em Avignon, pelos compositores Vitry, Cordier, Perrinet, Depansis e Franciac; tivemos o privilégio de ouvir o órgão, a viela de arco, a corneta de chifre e o trombone tocando extratos daquele manuscrito medieval. Mas esses instrumentos eram suplementares; imitavam as vozes.
No fim do século XIV, a Igreja distinguiu dois aspectos na música religiosa: o vocal, inserido na liturgia, e o instrumental, que comenta o desenvolvimento do ritual. Desde então, a responsabilidade pela execução de musica instrumental foi sendo atribuída, cada vez mais, a músicos leigos.
Consta que Zwingli, o mais bem dotado, entre os três grandes Reformadores, em matéria musical, baniu a música instrumental, e Luther foi ambíguo quanto ao seu uso na igreja.
No período barroco (séculos XVII e XVIII), na igreja luterana ortodoxa prestigiava-se a música instrumental (os instrumentos executavam prelúdios e interlúdios), mas o movimento pietista condenava essa prática.
Depois de 1750, houve reação de católicos e protestantes contra a música concertante. Mas instrumentos de orquestra (flauta, oboé, clarinete, fagote, trombone, violoncelo, contrabaixo), aos poucos, foram sendo introduzidos nas igrejas; o violino era proibido, por estar associado à música para dança.
Nas três primeiras décadas do século XX, sob a influência do “jazz”, nas igrejas evangélicas dos Estados Unidos da América desenvolveu-se a música instrumental. Atualmente, as maiores igrejas mantêm orquestras completas, além de admitirem o uso de saxofones, teclados eletrônicos, sinetas, violões, guitarras, pandeiros, baterias e outros instrumentos de percussão.
Fomos presenteados com dois CDs; o primeiro, no qual figura um coro (420 cantores) e uma orquestra (85 instrumentistas), gravado numa igreja presbiteriana em São Paulo (SP); o segundo, somente a orquestra (50 instrumentistas), numa igreja batista norte-americana.
Houve boa razão para usar uma orquestra quase completa e uma orquestração de hinos tradicionais: comemoravam-se os 500 anos do Brasil e foram cantados hinos que lembravam o luterano alemão Hans Staden (1549) no litoral paulista, calvinistas franceses (1557) no Rio de Janeiro e reformados holandeses (1640) na costa pernambucana.
A orquestra e o órgão deram tratamento sinfônico ao hino “Santo! Santo! Santo!”, de Heber e Dykes. A música de Ellor para o hino “Saudai o nome de Jesus” é, por natureza, grandiloquente. O órgão e os trompetes da música de S.S.Wesley para o hino “Da Igreja o fundamento é Cristo” retrataram a magnificência da liturgia anglicana.
Enfim, todos os números do programa foram executados no tempo certo, no lugar certo e com o sonido certo. Um grande coro, acompanhado por uma grande orquestra, justifica-se num ato solene, para execução de música significativa e relevante, durante um culto especial. Mas temos dúvida se é conveniente este tipo de execução instrumental em todos os cultos, durante todo o ano. Muito provavelmente, essa música, por vezes estridente e estrondosa, servirá apenas para abafar o barulho ou o canto da congregacão, e não contribuirá para o espírito de contrição no culto. Em muitas igrejas, o prelúdio instrumental facilita a conversação entre os “cultuantes” …
Para quase nada serve a igreja ter um órgão-de-tubos, se a congregação não ouve a música em absoluto silêncio.
Hoje em dia, as igrejas evangélicas adotam uma das seguintes condutas: dão oportunidade à pregação do Evangelho, num ambiente de introspecção, que leva ao arrependimento e à confissão de pecados, usando a hinodia para o canto congregacional e coral, ou dão ênfase à celebração comunitária, num ambiente de extroversão, que facilita a comunhão coletiva e a emoção individual, usando cânticos e miscelâneas, e a música instrumental mais intensa e variada.
Menos defensável é, no culto dominical, apresentar-se uma orquestra completa para sozinha executar hinos orquestrados; facilmente, será executada música para entretenimento da congregação. A ocasião apropriada será em outro dia ou horário, numa apresentação artística, para a qual devem ser convidadas pessoas apreciadoras de música orquestral.
No segundo CD, a orquestra americana é eficiente, mas a orquestração revela defeitos de compreensão dos hinos e a instrumentação algumas vezes não foi competente na escolha dos instrumentos solistas.
“A Mighty Fortress is Our God” tem um tratamento marcial no órgão e nos instrumentos de percussão; ora, Lutero estava numa situação tímida, angustiada e sombria. “What a Friend We Have in Jesus” atribui o solo ao trombone (usado por Mozart no “Requiem” e por Berlioz na “Sinfonia Fúnebre”), numa peça intimista, mas não lamentosa. O solo de trompete em “Jesus saves!” expõe um ambiente circense. O clarinete em “Joyful, Joyful” é mais mozartiano do que beethoveniano neste hino já repisado. “Just a Closer Walk with Thee” lembra Paul Whiteman em seus concertos de “jazz”. O melhor número é “Onward Christian Soldiers”, convocados pela trompa para a marcha.
Se uma orquestra de alto nível técnico comete essas barbaridades, que podemos esperar das orquestras e das orquestrações que nos prometem?
(Publicado em “O Jornal Batista”, 02 nov 2003, p. 4).