Nº. 683 – “Ludus vocalis” – 05 set 2004, p. 4

//Nº. 683 – “Ludus vocalis” – 05 set 2004, p. 4

Nº. 683 – “Ludus vocalis” – 05 set 2004, p. 4

 

Doc.JB-683

“Ludus vocalis”

Rolando de Nassáu

A Palavra de Deus, lida, pede uma resposta; esta, exprime-se pelo canto.

Agostinho prescreveu: “Legenti respondentes cantavimus” (Ao leitor da Palavra respondemos pelo canto)(ver: “In psalmum 40 enarratio. Sermo ad plebem”).

Tertuliano reconheceu a sucessão dos ritos litúrgicos: “Prout Scripturae leguntur aut psalmi canuntur aut allocutiones proferuntur aut petitionis delegantur”(Assim como a leitura da Escritura; ou o canto do salmo; ou a pronúncia da alocução; ou a oportunidade das petições)(ver: “De anima”).

A Antiguidade cristã seguiu os conselhos do apóstolo Paulo, fazendo do canto um modo normal da expressão da prece litúrgica (Colossenses 3,16; Efésios 5,19; 1a.aos Coríntios 14,26). Outras epístolas apresentam cantos litúrgicos (ver: OJB, 09 mar 86). O canto aparece como sinal de alegria e louvor. Mas o canto deve ser sempre entoado como um ato de adoração. O canto também serve de meio para manifestar a unanimidade de sentimentos da comunidade, e estimular a devoção dos crentes. Mas é difícil ao canto e à música conservarem-se dentro de sua função litúrgica; o crente é tentado a deter-se na emoção estética, sem penetrar no texto do cântico.

No início do século V, a Igreja tinha uma liturgia bem organizada, onde o canto ocupa um lugar importante. A religião discerne o sagrado e define a voz ritual. Freqüentemente, a voz é revestida de atributos divinos. Mas a voz também é um objeto de prazer. Líderes eclesiásticos mostraram-se preocupados com o prazer da voz. Nos séculos IV e V, houve controvérsias sobre o canto no culto divino.

Cantar ou não cantar? A Igreja teve uma posição ambígua na tensão entre a procura do prazer e a renúncia do prazer. Não, responderam os Pais da Igreja no deserto, argumentando: é possível cantar a Palavra de Deus? Lembraram que nos ofícios judaicos da sinagoga, o canto tinha propósito pedagógico, não artístico; que o canto cristão era clandestino; que opunha-se explicitamente aos rituais pagãos; estes recorriam a dispositivos festivos (música instrumental, dança e procissões), fustigados pelos primeiros censores cristãos. Não, “salvo se …”, ponderava Jerônimo (347-420).

cantilação tinha a função de transmitir a mensagem contida no texto litúrgico. A salmodia, cujo texto era em versos, tinha a função de expressar o louvor. Na salmodia, havia alternância da voz do “chantre” e do uníssono da congregação. O louvor era guiado pelo “chantre” e sustentado pela congregação. Havia um perigo: o ensejo da performance; o “chantre” expressava no canto o seu prazer; o canto de louvor se reduz à afirmação, no ato de cantar, da necessidade de cantar e de contentar-se. A voz não é mais simples suporte de uma palavra; a voz proclama a sua autonomia.

Na hinodia, uma primeira utilização deturpadora da mensagem foi feita por grupos dissidentes ou marginais (heréticos); eles usaram textos não extraídos das Escrituras Sagradas, por isso foram denunciados pelos construtores da ortodoxia.

Tertuliano (155-220) escreveu: “Desejamos que se cante (…) não certa espécie de salmo dos heréticos e dos apóstatas, (…), mas de Davi” (ver: “De Carme Christi”); contra Marcion, evocou “a demência com a qual os textos são redigidos”.

Ambrósio (340-397) legitimou o uso do hino na Igreja; a fim de solidificar uma comunidade em perigo, foi que Ambrósio instituiu o canto de hinos, introduzindo no ritual cristão um elemento vocal explícito. Sim, com entusiasmo, foi a resposta de Ambrósio; em seu tempo, o hino tinha conquistado sua “santificação”. Todas as reservas, ligadas ao seu caráter musical, à origem mais ou menos duvidosa de seus textos e de suas melodias (freqüentemente extraídas da música popular), foram retiradas; com o hino, o canto entrou pela porta principal da Igreja. Em sua polêmica “Contra Auxentrum”, Ambrósio admitiu que o canto de seus hinos tinha fascinado o povo: “Grande Carmen istud est, quo nihil potentius” (Grande é este canto, ao qual nada resiste) …

Agostinho (354-430) à indagação “Cantar ou não cantar?”, respondeu: Sim, sob condições (ver: “Confessiones”, X, XXXIII, 49-50); ele lembrou que, por ocasião da perseguição movida em Milão por Justina, mãe do rei romano, a prática hinódica impediu o povo de abater-se diante da heresia ariana; ele acentuou o fato de o canto ser um “recurso” para certas situações e condições; o hino é a “vox Ecclesia”.

João Crisóstomo (340-407) achava que os hinos eram de essência divina; recordou que “se os membros da comunidade são diferentes, eles não se distinguem por seu canto. Pois um só e mesmo espírito, conduzindo suas vozes, faz soar uma só melodia” (ver: Théodore Gerold, Les Pères de l’Église e la musique. Paris: Alcan, 1931, p.108). Ele argumentava que Deus ajuntou melodia às palavras proféticas, a fim de que, “atraídos os homens pelo ritmo do canto, todos se dirigissem a Ele, pelo fervor dos hinos santos”. Este argumento é uma tentativa de sedução, pois justifica o recurso ao prazer; nele existe o risco de abrir as portas da Igreja aos desvios. Acrescentava João Crisóstomo que “aquele que canta os salmos tem, já pela melodia, um grande prazer”.

Depois da Idade de Ouro (séculos V-VIII), o canto sacro foi, dos séculos IX ao XIX, uma tentativa, sem muito êxito, e por alguns momentos, de tirar do cantor cristão o prazer do canto e da voz, o “ludus vocalis” …

 

(Publicado em “O Jornal Batista”, 05 set 2004, p. 4).

 

2018-02-21T13:59:03+00:00 By |Formas e estilos musicais|