No. 785 – Puccini, compositor sacro ou profano? – 02 jun 13

//No. 785 – Puccini, compositor sacro ou profano? – 02 jun 13

No. 785 – Puccini, compositor sacro ou profano? – 02 jun 13

Música – No. 785

Puccini: compositor sacro ou profano?

(Dedicado à leitora Carolina Destro)

                       

                        Em 30 de novembro de 2012, no Templo Memorial Batista, um coro, composto de membros de igrejas evangélicas do Distrito Federal e mantido por uma associação cultural, executou o “Kyrie” e o “Gloria” da “Messa di Gloria”, de Giacomo Puccini (1858-1924). Essas peças tinham sido apresentadas, em 07 de dezembro de 2008, no mesmo local e pelo mesmo coro.

Possuímos um disco LP (“Erato” – EPR – 15.584), exibindo a execução dessas peças por coro e orquestra, regidos em  1974 por Michel Corboz, que comentamos neste semanário (OJB, 09 abr 89).

Puccini é conhecido na música erudita por suas óperas “La Bohème”, “Tosca” e “Madama Butterfly”, que tratam de temas mundanos.

Uma italiana “combinazione” (fosse no Brasil, seria um “jeitinho” …), permitiu a Giacomo herdar a função de organista, quando seu pai morreu em 1864, embora na ocasião o herdeiro tivesse somente seis anos de idade …

Alguns tubos do órgão, roubados e vendidos no mercado clandestino, não somente forneciam algumas liras para comprar cigarros (Puccini morreu por causa de um câncer de garganta), mas também obrigavam o adolescente a improvisar audaciosas harmonias e curiosas modulações durante os serviços religiosos na catedral, de maneira a disfarçar a ausência das notas roubadas … Foi então acusado de trazer o teatro para dentro do templo; injustamente, pois levou algo sagrado para o ambiente profano.

Em 1875, após uma representação de “Aída”, de Giuseppe Verdi (1813-1901), decidiu ser compositor de óperas, desprezando o cargo de organista da catedral. Seduzido pela ópera, abandonou a música religiosa. Escreveu o crítico Rogério de Cerqueira Leite que Puccini percebeu que seu talento bárbaro “não serviria para erigir grandes catedrais”, mas conseguiria “chamuscar Verdi”.

Com 20 anos de idade, em 1878 compôs, tão somente para ser admitido no instituto musical “Pacini”, em Lucca, duas peças litúrgicas. Estranhamos que Puccini não tenha confessado conhecimento da “Messa di Gloria”, de Gioacchino Rossini (1792-1868), arquivada em Lucca, sua cidade natal.

De acordo com a teoria de Harold  Bloom, o poeta novo faz do precursor um comentário à sua própria obra; cada poema é uma interpretação de algum poema anterior; aplicando-a à missa de Puccini, nela podemos explicar a de Rossini.

As duas peças em 1880 foram acrescentadas à “Messa di Gloria”; o manuscrito foi redescoberto, em 1945, pelo padre Dante Del Fiorentino. A carreira do operista Puccini baseou-se nesta missa,  Mas ele nem se interessou em publicar a missa, o que só ocorreu em 1951.

O primeiro triunfo teatral, com a ópera “Le Villi” (1884), desviou definitivamente a atenção de Puccini, da música religiosa para a ópera.

Ruy Wanderley, em 1977, informou que Puccini, além das 12 óperas, ainda encontrou tempo para compor música sacra. Diremos de maneira diferente: depois da missa de 1880, Puccini não achou mais tempo para a música religiosa …

Em sentido contrário, Puccini atribuiu maior valor às suas óperas: o “Kyrie” servirá de introdução em “Edgar” (1889); o “Agnus Dei” será um madrigal no segundo ato de “Manon Lescaut” (1893); o tratamento coral da missa anuncia o Puccini dos últimos anos, particularmente o que se ouve na ópera “Turandot” (1924); isto demonstra a preocupação pouco religiosa da referida obra.

Na opinião de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), ele foi “um músico altamente dotado, genial inventor de melodias, dono de fina cultura musical e de uma linguagem personalíssima. Traiu sua arte. Sacrificou tudo ao sucesso comercial. …  tornou-se fornecedor de melodias para a boate”.

Felizmente, o gênero sacro livrou-se de um falso compositor de música religiosa. Neste caso, a missão do crítico é “desmotivar” os leigos e os dirigentes de música,  para que não sejam enganados.

Em 1970, o musicólogo Herbert Handt pesquisou a história musical de Lucca e reconstituiu a missa de Rossini. Também esta missa contém trechos corais de óperas. Diz-se ainda que a música de Rossini é de essência muito frívola para ser religiosa; seu gosto não era o mesmo que predominava na época de Bach.

Pode-se duvidar da sinceridade do sentimento religioso, mas é inegável que Rossini contribuiu para o repertório de música religiosa erudita com, pelo menos, três obras: “Messa di Gloria” (1820), “Stabat Mater” (1832-1841) e “Petite Messe Solennelle” (1863-1864).

Começando pelo século 10, podem ser citadas 100 obras sacras, dentre as quais, com acerto e proveito, o regente poderia ter escolhido, sem precisar de um compositor cuja mente estava contaminada por melodias sensuais e temas profanos.

O músico evangélico, seja cantor, instrumentista ou regente, quase sempre atraído pela invenção melódica, que prefere Puccini, acaba preterindo a música sacra.

Esperamos que o conjunto vocal que em duas oportunidades executou a missa de Puccini explore outras fontes de música religiosa erudita. O que escrevemos a respeito dele serve para qualquer outro, em qualquer lugar.

(Publicado em “O Jornal Batista”, de 02 de junho de 2013, p. 3)

 

2018-02-21T15:37:38+00:00 By |Compositores|