Música – No. 802
Aos nossos coros falta … estilo!
(Dedicado ao leitor Renato Melillo Filho, de Florianópolis, SC)
Desde 1951 escrevemos sobre o desempenho de coros evangélicos. Nunca ficamos plenamente satisfeitos. São raros os coros de igreja que podem cantar bem em todos os concertos e gêneros. Talvez venham a obter a personalidade jurídica, mas ainda não têm a identidade musical. Cantam, mas seu canto não apresenta algo característico. O coro de estilo tem consciência da obra, antes e durante o concerto; costuma ser bem ensaiado e afinado, e estar bem alerta.
Muitos regentes pouco sabem sobre a qualidade da voz e a técnica vocal adequadas a determinada forma coral. Por isso, não ensinam aos coristas como produzir o som por eles desejado. Algumas vezes um corista não consegue produzir o som; isto cria problemas para ele e o coro. Em todos os coros há coristas preguiçosos ou preconceituosos em relação à preparação técnica.
Importante problema dos nossos coros é a falta de treinamento planejado nos ensaios regulares. Isto restringe o trabalho do coro a um determinado repertório, sempre o mais fácil. Também existem regentes preguiçosos, e tímidos, quando não combatem a desafinação.
Num ensaio do coro é exíguo o tempo para ensinar a respeito da voz humana, mas aos poucos o regente pode ir incorporando cer- tos aspectos fundamentais da técnica vocal. A base do canto é o controle da respiração. A falta de preparo individual prejudicará o fraseado, a entonação e a expressão coral. A ausência da orientação do regente poderá levar alguns coristas ao absurdo de imaginarem que a música dos períodos romântico e moderno requer expressão, mas não a do período clássico.
É mais fácil aplaudir “A Crucifixão”, de J. Stainer, do que “A Paixão, segundo São Mateus”, de J. S. Bach (Rolando de Nassau, Introdução à Música Sacra. Rio de Janeiro: edição do Autor, 1957).
O regente deve dispor em seu coro de vários tipos de voz, para que possa usar entonações vocais diferentes, isto é, dar tensões diversas à interpretação do texto.
Há muitos coros evangélicos que sempre, anos após anos, cantam do mesmo jeito (isto não significa que cantam com estilo); têm o mesmo esquema sonoro, num oratório de Haendel ou numa cantata de Bach; ou, o que é natural e previsível, com a mesma bisonhice apresentam um espetáculo musicado (“musical show”).
Outro importante problema é a falta de bom senso na inter- pretação de obras eruditas. Por exemplo, quando o coro de igreja, constituído de elementos provenientes de coros universitários ou profissionais, tenta cantar o “Requiem”, de G. Verdi, como se estivesse interpretando um trecho operístico desse compositor.
Esses elementos não são instruídos para modificar seu modo de canto, adaptando-o à música de igreja.
No passado, ainda no presente, conhecemos cantoras evangélicas que frequentaram os palcos líricos, com prejuízo para a execução de música religiosa. Até neste periódico lemos loas a essas divas.
Para cantar o tipo operístico de música coral são necessárias técnica e potência vocal; em geral, os coristas de igreja não as possuem.
No caso de Verdi, inclusive houve troca de palavras e temas da tradição operística reinante na segunda metade do século 19. Verdi compôs óperas porque era italiano, mas também para atender às necessidades culturais de sua época.
Com os instrumentistas, o regente pode fazer com que observem o caráter religioso da obra, às vezes viciado pelo ritmo “gospel”.
Antes de conseguir o estilo próprio, o coro deve saber cantar as notas da partitura, com equilíbrio na entonação e uniformidade nas vogais, dando importância à clara dicção do texto, que falta à maioria dos coros das igrejas evangélicas.
A acústica pode favorecer ou prejudicar a apresentação do coro. Temos séria dúvida se os dirigentes das igrejas se preocupam com os problemas acústicos dos templos, mas a quase certeza de que os ministros de música pouco se importam com o desconforto auditivo do público, causado pelas guitarras, baterias, atabaques e outros instrumentos de percussão que explodem os níveis de decibéis no ambiente. É mais provável que os obreiros facilitem a instalação de “data-shows”, que reproduzem as simpáticas fisionomias dos coristas; a de um eficiente sis- tema de sonorização poderá revelar os defeitos de suas vozes.
O que anima um regente é que o solista vocal não pode esconder as falhas técnicas, mas o coro pode …
Falta aos nossos coros … estilo!
Nos “anos dourados” (1953-1959) em que desabrocharam, sobrava estilo à Associação de Canto Coral, que era o melhor conjunto do Rio de Janeiro, sob a direção de Cleofe Person de Mattos, e ao Coro da Universidade Federal de Minas Gerais, o “Ars Nova”, regido por Carlos Alberto Pinto Ferreira. As pesquisas de Cleofe revelaram a música brasileira do período colonial e o Coro da ACC foi regido por Karl Richter, Colin Davis e Helmuth Rilling, entre outros.
Os maestros Guilherme Loureiro, Dorivil de Souza e Heitor Argolo receberam a influência de Cleofe para a fundação e orientação de seus coros; desde os primórdios queriam que fossem coros de estilo.
O “Ars Nova” tem divulgado obras do período barroco.
Os ingleses sempre tiveram o gosto musical apurado pelo canto coral. O trabalho coral desenvolve a aptidão intelectual e o gosto pela língua nativa, além de aumentar o conhecimento da Bíblia.
As catedrais inglesas desempenham uma importantíssima parte no cultivo da música coral e organística. Isto explica porque os coros ingleses têm estilo no canto e os organistas ingleses são exímios.
O coro que apontamos como o excelente em matéria de estilo musical é o da Christ Church Cathedral, em Oxford (Inglaterra). Fundado em 1526, seu primeiro organista e mestre-de-coro foi John Taverner (1490-1545). É formado por 12 adultos (seis funcionários e seis alunos da Universidade) e 16 meninos, acompanhados por dois organistas.
O canto desses 28 coristas suplanta qualquer de nossos coros, tanto em quantidade quanto em qualidade de trabalho; cantam, diariamente, nos serviços religiosos da Catedral.
Recomendamos os discos CD: 1) “Treasures of Christ Church” (“Avie”-AV-2.215); 2) “British Choral Music” (“Nimbus” – NI-5.691/5); 3) “An Oxford Elegy” (“Nimbus” – NI-5.166).
Em nossa opinião, o CCC é o melhor coro do mundo. (Publicado em “O Jornal Batista”, de 06 de julho de 2014, p.3) 16 de maio de 2014.