Doc.JB Música – No. 835
Rolando de Nassau
A música nos lares
(Dedicado aos leitores Norma e Alfon Kruklis)
Fizemos algumas visitas; observamos que, em cada visita, o dono da casa exibia sua preferência musical.
Em outubro de 1954, a convite de um colega católico da Faculdade Nacional de Direito, que desejava inaugurar a vitrola (antigo aparelho para reproduzir sons gravados em disco), fomos ao seu apartamento no Méier, e ouvimos os motetos do renascentista Palestrina, baseados no Cântico dos Cânticos, de Salomão; ficamos maravilhados com a clareza da textura.
Em abril de 1956, fomos convidados por um casal para visita-los em seu acolhedor apartamento em Copacabana; ou- vimos, na íntegra, o oratório “Messias”, de Haendel, impressionados com a competência do coro e dos solistas.
Em 1957, fomos a uma bela casa na Floresta da Tiju- ca, para ouvir trechos da cantata “Jauchzet Gott in allen Landen” (Jubilai ao Senhor em todas as terras), BWV-51, de Bach, interpretados por uma soprano de passagem pelo Rio.
Oferecemos ao presidente da empresa privada em que trabalhávamos um exemplar de “Introdução à Música Sacra”; então, em 1958, ele convidou-nos ao seu palacete na lagoa Rodrigo de Freitas, para ouvir, em gravação completa, o “Requi- em”, de Mozart.
Em 1961, estávamos em Porto Real (RJ), onde encontramos um huguenote; agora era industrial na área de refrigerantes; convidou-nos à sua fazendola, quando ouvimos salmos compostos por Sweelinck, seu ancestral.
As obras de Palestrina, Haendel, Mozart e Sweelinck foram ouvidas por nós na intimidade de alguns lares. Por isso, em várias oportunidades, escrevemos que aqueles eram os “anos dourados”.
O desenvolvimento da fonografia tornou possível a expansão do repertório da música sacra gravado em disco; ficou muito mais difícil a escolha de uma obra. Pressentimos que viriam anos em que a qualidade do gosto musical decairia.
A decepção ocorreu em Brasília, em 2014: numa visita, durante todo o tempo os adolescentes tocaram um “rock” psicodélico da banda “Pink Floyd” e disseram que aprenderam com seus pais a gostar desses roqueiros cinquentões; tivemos a sensação de uma queda no abismo …
Para ajudar nossos leitores, inventamos uma tabela, com escala descendente do nível 5 para o nível 1, que serve para avaliarmos a música que ouvimos; serve também para o crente escolher a forma que deve usar no louvor a Deus, para ouvi-la ou canta-la. O nível 5 é o de maior complexidade composicional e o de maior dificuldade de execução.
Tabela de avaliação
Nível 5 – música sacra erudita, para coro, composta, nos séculos 16, 17 e 18, na liturgia católica, principalmente por Giovanni Pierluigi Palestrina (1526-1594), Thomas Luis de Victo- ria (1548-1611), Claudio Monteverdi (1567-1643) e Antonio Vivaldi (1678-1741); nos séculos 17 e 18, na liturgia luterana, por He- inrich Schütz (1585-1672) e Johann Sebastian Bach (1685-1750); nos séculos 16, 17 e 18, na liturgia anglicana, inicialmente nas catedrais, por William Byrd (1543-1623), Thomas Tomkins (1572- 1656), Thomas Weelkes (1575-1623), Henry Purcell (1659-1695) e William Croft (1678-1727).
Nível 4 – música religiosa erudita, para coro, composta por outros compositores católicos, luteranos e anglicanos; nesse grupo, Georg Friedrich Haendel (1685-1759), que foi “a fi- gura dominante na vida musical inglesa na primeira metade do século 18” (ver: Fellowes, Edmund H. English Cathedral Music. London: Methuen, 1973). Entretanto, Haendel nada escreveu para os cultos regulares da Igreja Anglicana; nenhuma de suas obras religiosas é apropriada ao uso litúrgico; ele não aceitou o estilo paroquial.
Nível 3 – apenas para ilustração do leitor, devemos lembra-lo de que, ao lado da música erudita do século 16, sacra ou religiosa, existia a salmodia calvinista, composta pelos franceses Claude Marot (1496-1544), Loys Bourgeois (1510-1561) e Claude Goudimel (1510-1572), e pelo holandês Jan Pieterszoon Sweelinck (1562-1621), e a salmodia anglicana, pelos ingleses Thomas Sternhold (1500-1549), Francis Rous (1579-1659), Na- hum Tate (1652-1715) e Nicholas Brady (1659-1726); depois da salmodia, veio a hinodia primitiva, composta, nos séculos 17 e 18, por Martin Rinckart (1586-1649), Paul Gerhardt (1607-1669), Georg Neumark (1621-1681), Joachim Neander (1650-1680) e Gerhard Tersteegen (1697-1769), alemães luteranos; somente no século 18, por Thomas Ken (1637-1711) e Isaac Watts (1674- 1748), dissidentes ingleses.
Nível 2 – a nova hinodia, no século 18, influenciada pelos Dissidentes da Igreja Anglicana, representados por Philip Doddridge (1702-1751), John Wesley (1703-1791), Charles Wesley (1707-1788), John Newton (1725-1807), Augustus Montague Toplady (1740-1778) e Reginald Heber (1783-1826).
Nível 1 – a hinodia evangélica dos séculos 19, 20 e 21, representada por Thomas Hastings (1784-1872), Lowell Mason (1792-1872), Fanny Crosby (1820-1915), Robert Lowry (1826- 1899), Paul Philip Bliss (1838-1876), Ira David Sankey (1840- 1908) e Will Lamartine Thompson (1847-1909); desde o surgimento do “rock”, em 1955, abriga a chamada música cristã contemporânea (roque santeiro), e os cânticos contemporâneos e tolera os “musical shows” (espetáculos musicados), que revelam uma constante e crescente preocupação com o efeito teatral (uma jovem levando ao colo um boneco, para representar a Virgem Maria e o Menino Jesus, ou um barítono barbudo, com olhos esbugalhados, no papel de Jesus crucificado); há um mar- cante declínio na musicalidade.
Se tivéssemos essa tabela por ocasião das visitas, poderíamos ter informado aos nossos hospedeiros, se perguntassem, em que nível estava a música em sua casa … Ela estava no nível 5!
Rolando de Nassau. Brasília, DF, em 14 de janeiro de 2017.