Música – No. 804
A música religiosa na Primeira Guerra Mundial
(Dedicado aos musicistas que sofreram as aflições da guerra)
No dia 14 de julho de 1914, o casal, pastor Francisco Fulgêncio Soren e dona Jane Soren, e seus filhos, Francisca e João Filson Soren, embarcaram no navio-a-vapor inglês “S.S.Vandyke” com destino a New York, passando por Trinidad e Barbados; chegaram em 04 de agosto, justamente no dia em que a Inglaterra entrou na discórdia internacional contra a Alemanha. O objetivo da viagem era levantar 50 mil dólares para a construção do templo da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro.
Meu pai, Irineu Coutinho de Hollanda (1889-1965), viajou com eles até New York; aí tomou um trem para Liberty, no estado do Missouri, a fim de cursar o bacharelado em pedagogia no “William Jewell College” (OJB, 09 e 23 jul 1914).
Em 28 de junho, um terrorista sérvio assassinara o arqui- duque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, em Serajevo, capital da Bósnia. Em 28 de julho, o Império declarara guerra à Sérvia. O propósito dos nacionalistas sérvios era afirmar sua diferença em relação ao Império, que suprimiu sua língua e cultura.
A Primeira Guerra Mundial, motivada por um desentendi- mento local, foi justificada pelos militares e diplomatas. Em 1914, o escritor britânico H.G. Wells escreveu que essa guerra seria “a guerra para acabar com as guerras”. Na prática, ela extinguiu os impérios alemão, austro-húngaro, otomano e russo. Mais de 62 milhões de soldados participaram da guerra, na qual morreram mais de 8 milhões, e ficaram feridos mais de 20 milhões, muitos definitivamente mutilados.
Em 1914, lutaram nos campos abertos; em 1915 e 1916, nas trincheiras. Em 1917, os submarinos alemães intensificaram os ataques aos navios mercantes, inclusive os brasileiros. Líderes (Francisco Fulgêncio Soren, Salomão Luiz Ginsburg, William Edwin Entzminger, John Mein, Stephen Lawton Watson, M.G.White, William Carey Taylor, John B. Parker, Clifton Ayres Baker) tiveram de enfrentar os perigos das viagens marítimas; na época, o navio era o único meio de transporte entre o Brasil e os EUA. Taylor Crawford Bagby e Lewis Malen Bratcher aguardaram o armistício para poderem viajar.
O conflito interferiu no desenvolvimento das atividades das igrejas e da Denominação Batista no Brasil; eram 140 igrejas, que congregavam 10 mil membros (OJB, 21 e 28 ago 1913).
Em novembro de 1911, tinha sido contratada, com uma em- presa gráfica na Alemanha, a primeira edição musicada do “Cantor Cristão” (OJB, 02 e 09 nov 1911); depois foi contratada uma tipografia portuguesa (OJB, 09 mai 1912), sendo encomendados 10 mil exemplares do CC, somente com as letras (OJB, 12 e 26 mar 1914). A 15ª. edição, pro- metida para 1916, só ficou pronta em janeiro de 1917 (OJB, 01 fev 1917).
Em 11 de novembro de 1918, a Alemanha rendeu-se; foi as- sinado o armistício para cessação das hostilidades.
Com o fim da guerra, a Casa Publicadora Batista (antecessora da JUERP) resolveu assumir a responsabilidade de publicar as futuras edições do “Cantor Cristão” (OJB, 20 mar 1919); a edição musicada só se- ria publicada em 1924.
A guerra atrasou, em pelo menos um lustro, os planos de Francisco Fulgêncio Soren para construção do templo da PIB-RJ.
Mas não foi somente prejudicada a impressão e distribuição do nosso hinário denominacional.
A tradução de hinos, inicialmente publicados nas páginas de “O Jornal Batista”, também diminuiu em seu volume. Durante os cinco anos da guerra (1914-1918) foram publicadas (observada aqui a ordem cronológica) as traduções dos hinos nos. 529, 89, 356, 167, 53, 424, 413, 187, 417, 382, 340, 58, 210, 344, 251, 305, 170, 499, 360, 349, 139, 188, 18, 368, 30, 509, 97, 355, 259, 389 e 59 (média: seis hinos por ano).
O que nos chama a atenção: com exceção dos hinos nos. 340 e 30, não se preocupavam com os horrores da conflagração mundial.
O de no. 340 começava dizendo: “Importará ao Senhor Jesus que eu viva no mundo a ter o meu coração cheio de aflição? Sentirá meu triste viver?”. O autor da letra inglesa morreu em 1919 …
O de no. 30 tinha uma mensagem confortadora: “Tudo é paz, tudo amor!”, originalmente escrita em alemão por um padre austríaco em 1818, publicada em inglês numa coletânea batista em 1918 …
Curiosamente, bem no início do conflito internacional foi publicada a letra do hino no. 323, “Castelo forte”, do protestante alemão Martin Luther … (OJB, 03 set 1914).
Entre os hinos escritos nos EUA durante a guerra podemos citar: “What a wonderful change”, “Living for Jesus” e “At Calvary”.
O hino de Rufus H. McDaniel, que fala sobre a maravilhosa mudança na vida, desde que Jesus nela entrou, poderia ser cantado pelo soldado caminhando em campo aberto no meio do tiroteio (1914), particularmente na frase “agora não existem nuvens de dúvida para escurecer minha caminhada”.
“Living for Jesus”, de Thomas Chisholm, pelo soldado na trincheira (1917), que teve bastante tempo para refletir que estava vivo, enquanto Jesus morria em seu lugar.
William R. Newell, ao aproximar-se o fim do tormento (1918), com o hino “At Calvary” agora poderia alegremente reconhecer Jesus como seu rei.
Na escassa música religiosa erudita do período (1914-1918), encontramos do organista alemão Max Reger (1873-1916): 1) “Oito cânticos espirituais”, baseados no Saltério; 2) “Requiem”, prematuramente dedicado “à memória dos heróis alemães”.
“O hino de Jesus”, cantata composta em 1917 por Gustav Holst (1874-1934), é uma busca esotérica num contexto cristão. Holst usa a dança e hinos latinos para expressar seu misticismo.
Depois da Primeira, viria a Segunda Guerra Mundial
Ralph Vaughan-Williams (1872-1958), compositor inglês que teve a excepcional oportunidade de assistir o desenrolar dos horrores da Grande Guerra, em 1936 compôs “Dona nobis pacem” (Dái-nos paz). A acumulação das ameaças nazistas e a crença de um novo conflito em futuro próximo inspiraram esta admoestação em favor da paz. Para ele, ninguém ficaria à margem das preocupações com a paz internacional. Só para contrariar, o roqueiro Morrissey afirmou: “World Peace is none of your business” (A paz mundial não é da sua conta) …
(Publicado em “O Jornal Batista”, de 07 dez 2014)