Música – No. 784
Miriam Carpinetti e as “Meditações” de Messiaen
“Eu nada teria composto, se não tivesse a graça de ser crente” (Olivier Messiaen)
A organista Miriam Carpinetti, professora da Universidade Estadual de Campinas (SP), participou do II Simpósio Internacional de Musicologia, realizado de 15 a 17 de agosto de 2011, sob o patrocínio da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo em conta os novos rumos da teoria e da musicologia.
Sua contribuição foi incluída nos anais, publicados em 2012, numa edição de Maria Alice Volpe, sob o título “Considerações sobre materiais compositivos utilizados em “Méditations sur les Mystères de la Sainte Trinité”, de Messiaen.
Miriam começa comentando as circunstâncias em que foram escritas as “Meditações”; isto é muito interessante para o neófito, seja músico ou apenas apreciador de música erudita. Depois, sobre aspectos técnicos da composição e da execução da obra. Ficamos sabendo que Messiaen inspirou-se na rítmica hindu e na prosódia grega; que explorou a região superior dos teclados do órgão. Inclusive, que não existe a mesma objetividade na correspondência entre elementos da linguagem verbal e da linguagem musical; que Messiaen, ao invés de utilizar sílabas de solfejo, usa letras do alfabeto (as do sistema musical alemão) e outras; que, além do tema de Deus, criou temas para as pessoas da Trindade e o verbo amar; que Messiaen buscou sintetizar o conjunto de conhecimentos musicais em diferentes níveis.
Olivier Messiaen (1908-1992) foi uma das mais paradoxais figuras na música erudita: músico abertamente radical, foi também uma pessoa profundamente tradicional. Na maturidade, depois de 1969, o órgão representou uma espécie de retor- no; nessa fase, sobressaem as “Meditações”, oportunamente analisadas por Miriam Carpinetti, talvez o conjunto de peças mais importante destinado ao órgão.
Conhecemos três obras de Messiaen: 1) “O nascimento”, para órgão, executada por Simon Preston; 2) “A transfiguração”, para piano, violoncelo, flauta, outros instrumentos, tenor, barítono e coro, com orquestra sinfônica, regida por Antal Dorati; 3) “A Igreja eterna”, para órgão, executada em 1997 por Yolanda da Costa Serena no órgão da catedral de São Paulo (SP).
O compositor francês em 1931 foi nomeado titular do órgão “Cavaillé Coll” da igreja da Santa Trindade, em Paris, cargo que exerceu durante 61 anos!
Neste abnegado serviço de culto, acompanhou os cantos da congregação, sustentou o cantochão, interpretou as páginas do repertório, e improvisou.
Talvez equiparável ao protestante Johann Sebastian Bach, no que diz respeito à dedicação no ofício, Messiaen humildemente traduzia a Palavra de Deus e os dogmas da Igreja Católica Romana; semelhantemente usando os teclados do órgão, “expressava sua fé com uma pregação sonora e um comentário teológico”; como Gilles Cantagrel sugeriu, compare-se a “Tocata e Fuga”, em ré menor (BWV- 565), de Bach, e a “Tocata”, em dó, de Messiaen. Alternando narração e comentá- rios, algumas peças de Messiaen para órgão lembram as de Bach.
Essa obra-prima foi a única peça para órgão que teve oportunidade na liturgia; composta em 1951, antes do Concílio Ecumênico Vaticano II, era uma das intervenções permitidas ao órgão no decorrer da missa.
Para o crítico Pierrette Mari, “se a noção de sagrado implica uma comunhão íntima com as belezas e os mistérios da criação e do amor”, então a obra de Messiaen corresponde bem às suas palavras: “Eu nada teria composto, se não tivesse a graça de ser crente”.
Entretanto, certas obras de Messiaen não entram na concepção cristã do sagrado. Porém, para ele duas idéias são básicas:
1) a verdade dos dog- mas de sua fé católica;
2) o amor pela natureza, cuja manifestação revela o reconhecimento de Deus. Os mistérios de sua origem e a onipresença divina lhe inspiram uma profunda devoção. Por isso, foi chamado de “São Francisco de Assis da música do século 20”. Messiaen chegou a considerar o progresso mate- rial como um desvio na contemplação das verdades eternas.
Em 1965 Messiaen renovou as normas da composição, da orquestração e da estética, tornando-se um crente, num século distanciado do divino, e um músico que fez a síntese entre uma linguagem moderna e uma fé milenar.
Sua música conserva os signos de suas convicções cristãs.
O órgão da “Sainte Trinité” foi reformulado; ficou mais sinfônico, prestando-se melhor à execução das obras compostas a partir de 1967.
O abalizado estudo de Miriam Carpinetti é uma competente introdução de organistas evangélicos à bela música de Olivier Messiaen.
PS – Na revista “OPUS” (vol. 18, no. 2), editada em Porto Alegre (RS) pela ANPPOM, Miriam publicou em dezembro de 2012 o artigo “Variações tímbricas em “Méditations sur le mystère de la Sainte Trinité”, de Olivier Messiaen”.
(Publicado em “O Jornal Batista”, de 19 de maio de 2013, p.3)