Doc.JB – No.842 – MÚSICA
Rolando de Nassau
A Paixão de Cristo na Memorial
(Dedicado à leitora Nair Silva Santos, de Brasília, DF)
A Igreja Memorial Batista concedeu a dois grupos o privilégio de participarem, em 14, 15 e 16 de abril, das co- memorações da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Um grupo poderia escolher uma das seguintes formas musicais:
1) cantata (obra para ser cantada, no templo ou na sala-de-concerto, sacra ou profana; admite recitativo, ária e parte coral; de caráter lírico; as vozes não representam, necessariamente, os protagonistas)
2) oratório (obra sacra ou profana, de caráter dramático; executada, sem figurinos, cenários ou mímica, por solistas vocais, coro e orquestra; compreende ária, arioso, recitativo, duo, trio e parte coral);
3) ópera (obra sacra ou profana, de caráter dramático; há centenas de óperas desprovidas de drama; utiliza música e espetáculo; a música normalmente desempenha a principal função; a ária e seu recitativo foram os elementos básicos da cantata, do oratório e da ópera);
4) opereta (obra cênica mais curta que a ópera, com diálogos declamados e danças);
5) drama musical (ópera em que os elementos musicais, verbais e cênicos servem a um fim dramático; os motivos melódico-dramáticos integram a música e a ação cênica, dispensando o uso de árias e recitativos);
6) “musical show” (espetáculo musicado), que utiliza elementos musicais contemporâneos, figurinos, cenários, mímica e danças). O primeiro grupo escolheu o espetáculo musicado, que, na prática, foi mais espetáculo do que concerto musical; o apêndice anglófilo (“in concert”) deveu-se ao fato de os letristas e compositores das oito peças musicais serem todos norte-americanos e estarem alinhados com as ideias da música cristã contemporânea – CCM.
Se fosse concerto musical, as músicas ocupariam a maior parte da apresentação, mas duraram apenas 20 dos 60 minutos da encenação teatral. O espetáculo teve a forma de uma narrativa, no estilo teatral. Na história da Memorial, foi a mais efetiva experiência no gênero.
Se tivesse escolhido a forma “oratório” (não temos esperança de algum dia apreciá-la na Memorial, ou em qualquer outra igreja batista no Brasil), para comemorar a história da crucificação de Cristo, a melhor opção seria a “Paixão, segundo S. Mateus”, de Johann Sebastian Bach.
Por que Bach compôs dois oratórios com temas passionais, e não uma ópera? Isto não quer dizer que desprezasse a expressão dramática. A Leipzig luterana não tinha ópera.
Bach não queria o palco de uma ópera, nem de um teatro; não estava à procura de personagens, nem de eventos.
Seus oratórios passionais deveriam acontecer na mente do cristão. O oratório de Bach tem uma pureza verbal e uma intensidade emocional que a ópera só consegue atingir com recursos extra-musicais. Especialmente o baseado no Evangelho de Mateus, é uma meditação, sublinhada por melo- dias. A música de Bach serve para mostrar mentes em contradição; os solistas vocais, nos recitativos e nas árias, se contradizem. Ou para juntar instrumentistas e cantores na expressão de seus sentimentos. É fácil observar isto: o oboísta toca “Ich will bei meinem Jesu wachen” (quero estar perto do meu Jesus, no. 20), enquanto o tenor solista produz o “vôo lírico” da melodia, que contrasta com a profundidade da parte coral; o violinista executa “Gebt mir meinem Jesum vieder!” (devolvei-me o meu Jesus!, no. 42) para o baixo solista expressar a indignação de Bach e Picander ante a traição de Judas.
O recitativo tinha a reputação de ser insípido e monótono. Os únicos momentos de relativa atenção do público eram aqueles em que um cantor vinha ao proscênio para cantar uma ária. Por isso, os compositores tinham a preocupação em não limitar o prazer visual do público.
Bach estava mais preocupado com a agilidade intelectual dos ouvintes; os recitativos ele escrevia curtos (duravam 2 minutos); na partitura usou tinta vermelha para destacar os recitativos que seriam cantados pelo Evangelista.
Para o produtor de ópera e teatro Peter Sellars, Bach “é mais compositor da dúvida do que compositor da afirmação”.
A orquestra filarmônica de Berlim, em abril de 2010, abandonou a maneira tradicional de executar a Paixão, segundo São Mateus, e adotou a concepção de Sellars: a execução deve criar na plateia o sentido da comunidade e os executantes de- vem ser aproximados dos ouvintes.
Há mais de 40 anos, na chamada Semana Santa, ouço uma das minhas gravações, em LP ou CD; nunca senti necessidade de me aproximar do toca-discos.
Sellars provocou reações por não colocar a figura emblemática de Jesus no proscênio. Ele lembrou que pessoas em torno de Jesus agiam sem misericórdia, sem amor, sem empatia; as atitudes entre os seguidores de Jesus é que fazem a diferença.
O outro grupo escolheu executar a cantata “Jesus – morte e ressurreição”, de Verner Geier, composta em 2014.
Além de hinógrafo (hinos nos. 311, 380 e 407 do HCC) e compositor muito inspirado, Verner Geier tem incursionado competentemente no campo da música erudita.
Conhecíamos o oratório “Cartas às sete igrejas do Apocalípse”, em 26 partes, apresentado na Igreja Memorial em 2012 (OJB, 06 jan 2013), quando escrevemos: “Ele escolheu muito bem o assunto de sua obra – a situação espiritual e moral dos crentes e das igrejas. Ele não está interessado em fazer com que seus ouvintes se sintam felizes e satisfeitos com o seu modo de vida. Muito pelo contrário, ele admoesta os crentes e as igrejas, não com as suas, mas com as palavras do Evangelista, repetindo o refrão: “Repreendo e castigo a todos quantos amo”.
A cantata (2014) começa com a cena, registrada nos quatro Evangelhos, em que os discípulos, reunidos no jardim “Getsêmani”, em Jerusalém, para orar, dão ao seu Mestre uma decepcionante resposta: por três vezes são encontrados dormindo. O trecho é cantado por contraltos e sopranos, e explicado por um narrador.
Na segunda parte, para ilustrar o ambiente de tristeza, toca uma clarineta; é descrita sucintamente a prisão e a condenação de Jesus.
A cena da crucificação, apenas cantada, tem o poder de, pelo ouvido, levar o ouvinte à emoção; numa encenação teatral, será necessário usar elementos do cenário.
A parte final retrata o Jesus ressuscitado; com grande vigor sonoro, os cantores e os instrumentistas proclamam: “Saiu! Ressurgiu! Jesus ressuscitou!”
Para a realização desses eventos, houve muitas escolhas; devem ter levado em conta a coerência e compatibilidade das preferências e capacidades.
Rolando de Nassau. Brasília, DF, em 17 de abril de 2017.