Doc.JB-729
Rolando de Nassáu
(Dedicado à leitora Andrônica Borges, de Fortaleza, CE)
Em 1995 publicamos nossa lista das obras mais importantes da música cristã (ver: OJB, 12 e 26 mar, 09 abr 95); este nosso “cânone musical” está reproduzido em nossa página na internet (http://www.abordo.com.br/nassau/).
Recentemente, a noção de que algumas obras musicais são melhores do que outras tem sido discutida entre os acadêmicos. O cânone da música erudita ocidental, construído ao longo de 300 anos com obras-primas, tem sido denuncia- do como um artifício cultural. Entretanto, a maior parte dos músicos e dos musicistas (incluindo os acadêmicos) continua a preferir certas obras ou compositores.
É possível perceber a qualidade musical, independentemente da aculturação. Podemos refinar nosso entendimento e julgamento das obras musicais, ter nossas preferências musicais. Mas devemos examiná-las por meio de artigos e livros sobre música. Assim, consultando gravações em CD e DVD, observaremos que o gosto musical modificou-se no século 20 e observaremos que pode tornar-se mais racional e sofisticado o nosso próprio gosto.
A preferência musical depende, quase inteiramente, de quanto tempo uma pessoa está ouvindo um determinado estilo de música. Quanto mais complexa a música, mais tempo de audição será necessário para apreciá-la. Os ouvintes de música erudita e “jazz” estão mais expostos às sutilezas harmônicas.
Uma das razões pelas quais muitas pessoas não apreciam música erudita e “jazz” em nossos dias é porque não ouvem esses estilos nos programas de rádio e televisão. Uma outra razão é porque o volume das gravações em CD e DVD foi drasticamente reduzido pelas empresas, para beneficiar o “pop”, o “rock” o “rap” e o “hip-hop”. As empresas sabem que para reagir emocionalmente a esses estilos, a massa consumidora não precisa usar muito o seu cérebro. A mídia pode criar os astros e as estrelas da música popular.
A produção musical depende de um contexto cultural, mercantilista e globalizado, que recicla, em períodos curtos, as emoções dos consumidores; estes não têm muito tempo para “ouvir” a música; basta-lhes repetir os chavões das letras. Os “ouvintes” da música popular estão mais expostos às agitações dos ritmos.
Para ter gosto musical é necessário gozar saúde mental. Alguns cientistas acreditam estar mais próximos do entendimento da razão pela qual algumas pessoas gostam de música popular e outras gostam de música erudita.
O psiquiatra Raj Persaud, do hospital “Maudsley”, de Londres, afirmou que a apreciação de música erudita requer mais atividade cerebral; não é necessária muita massa cinzenta para gostar da música popular; sua tese (“BBC Magazine”, junho de 2001) foi apoiada por estudiosos italianos. O neurologista Giovanni Frisoni escreveu que “a música popular é composta para apelar à audiência mais ampla possível” (“Neurologia”, junho de 2001).
Nosso gosto musical dá uma indicação quase exata de nossa identidade pessoal.
Samuel Gosling, pesquisador do Departamento de Psicologia da University of Texas in Austin (USA), num recente (2006-2007) estudo no campo da neuromúsica, afirma que o tipo de personalidade de uma pessoa pode ser definido pelo estilo de música que ele prefere ouvir. Ele baseou seu estudo num teste psicológico aplicado a mais de 10 mil pessoas residentes em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Ele concluiu que a personalidade de uma pessoa mostra alguns traços característicos, de acordo com as suas preferências musicais.
Gosling elaborou uma lista de diferentes gêneros musicais: erudito, ópera, folclórico, religioso, “gospel”, “soul”, “country”, “jazz”, “blues”, “pop”, “reggae”, “punk”, “funk”, “rock”, “heavy-metal”, “rap”, “hip-hop”, “new age”, e outros. O gênero erudito abrange os estilos de canto sacro e profano. A ópera e o folclore são preferências musicais distintas. O gênero religioso é o tipo de música praticado nos EUA, particularmente no Texas e na Califórnia, podendo ser assemelhado à “Contemporary Christian Music” (música cristã contemporânea), mas não incluindo o “gospel”, o “soul” e o “country”, canções com conteúdo religioso.
Os outros estilos musicais (“jazz”, “blues”, “pop”, “reggae”, “punk”, “funk”, “rock”, “heavy-metal”, “rap”, “hip-hop” e “new age”) pertencem todos à música profana.
Gosling identificou quatro “dimensões” da preferência musical: complexa, agressiva, divertida e vibrante.
No teste, o respondente indica a extensão (de 1 a 7) na qual gosta de ouvir cada um dos gêneros musicais indicados por Gosling. Depois de responder a todas as questões do “site”, ele clica “submit”; em seguida, escolhe os traços de personalidade que a ele se aplicam.
O “site” classifica o respondente numa das quatro “dimensões”.
As pessoas pensativas tendem a apreciar os gêneros erudito, folclórico, “jazz” e “blues”; frequentemente têm as seguintes características: são abertas a novas experiências e tarefas intelectuais; são liberais em questões políticas; em seu estilo de vida, são sofisticadas e têm boa situação financeira; pertencem às classes alta e média; dão importância à sabedoria, às belas artes, à segurança da família e à tranqüilidade pessoal; apreciam filmes documentários; sua preferência musical é complexa.
As pessoas impacientes tendem a apreciar os gêneros “rock” e “heavy-metal”; sua preferência é agressiva.
As pessoas divertidas tendem a apreciar os gêneros religioso, “country” e “pop”; consideram a beleza sonora e a harmonia interior muito importantes em sua vida; preferem filmes de “suspense”.
As pessoas vibrantes tendem a apreciar “funk”, “rap” e “hip-hop”; são mais encontradas entre os adolescentes e jovens. (ver: RENTFROW, P. J. & GOSLING, S. D., “The do re mi’s of everyday life”. Journal of Personality and Social Psychology, 84 (2003), pp. 12.535-12.561).
O conhecimento técnico não significa amor pela música. A educação, a formação técnica, talvez contribua para o refinamento do gosto musical dos jovens. Os seminários, os conservatórios, as faculdades e as escolas de música têm como objetivo o aprendizado para entender a arte dos sons. Nesses estabelecimentos, o aluno pode obter conhecimento a respeito da estrutura formal e do conteúdo funcional de uma obra musical. O aprendizado é útil, mas é indispensável apreciar a obra musical, por meio da leitura de livros e periódicos, freqüência de aulas, palestras e conferências, audição de gravações.
Passar do entendimento à apreciação é percorrer um longo caminho.
Como pode a música prosperar em nossas igrejas sem ouvintes que têm informação, sentimento e discernimento a respeito do que seja “ouvir”música?
Os bacharéis em música querem remediar o analfabetismo dos que não freqüentaram um estabelecimento de ensino, mas, eles mesmos, não cultivam a apreciação, o amor pela música que cantam ou tocam.
“A educação gera a luz, mas nem sempre calor” (Bernard Holland).
(Publicado em “O Jornal Batista”, 01 jun 08, p.4).