Doc.JB – No. 844 –
Rolando de Nassau
O narrador
(Inspirado por um sonho noturno e dedicado à leitora Aseneth Moura Brasileiro do Vale, de Brasília, DF)
Em certas cantatas e oratórios, o narrador tem o papel importante de relatar fatos da vida de Jesus.
Dei-me conta de que nunca escrevi sobre cantatas e oratórios, em que fosse destacado o narrador de maneira tão exemplar.
Johann Sebastian Bach (1685-1750) introduziu no texto da “Paixão”, segundo São Mateus, a figura do narrador, que é o Evangelista, para descrever as cenas da paixão de Cristo; encarregou um tenor com a função de recitar, cantando ou falando, os versículos dos capítulos 26 e 27 do Evangelho.
Para demonstrar como é importante a participação do tenor-narrador, anotei as suas intervenções nesse oratório:
- depois de um coral introdutório, o Evangelista começa a sua narração;
- faz referência à conspiração contra Jesus;
- descreve como Judas acerta o pagamento de sua traição;
- conta como Cristo anuncia a Sua morte;
- como transcorre a Ceia;
- descreve a cena no Jardim das Oliveiras;
- testemunha a prisão de Jesus e a fuga dos discípulos;
- conta como os sacerdotes acusam a Jesus e O condenam;
- mostra a cena de Jesus ante Pilatos;
- conta como Simão ajudou Jesus a carregar a cruz;
- transporta os ouvintes do oratório – ao Gólgota;
- narra o desfecho da tragédia: a crucificação de Jesus;
- finalmente, descreve como José de Arimatéia providencia uma sepultura para Jesus.
Ernst Haefliger (1919-2007) em 1943, pela primeira vez, interpretou o papel. O maestro Karl Richter (1926-1981) escolheu esse tenor para a gravação em LP (“Archiv”, 1980) com o Coro e a Orquestra de Munique, pois o seu timbre se adaptava bem; suas interpretações da “Paixão, segundo São Mateus”, desde a década de 60, tinham estabelecido um padrão universal (ver: Roland Wörner, K.R.: his life and work, Conventus Musicus)
A partir de 1970, os coros (“Memorial” e “Mensageiros da Paz”) da Igreja Memorial Batista realizaram concertos, alguns para executar obras importantes da música religiosa erudita (“Messias”, “Elias”, “As sete últimas palavras de Cristo”).
Escrevemos, pelo menos quatro vezes, sobre a cantata “Maior Amor”, pelo coro da Memorial (OJB, 08 nov 70, 30 mai 76, 01 e 08 nov 81).
Conhecido por seu zêlo excepcional com a reverência no templo, os regentes Tasso Brasileiro do Vale e Albano Sílvio de Freitas recorreram ao pastor Éber Vasconcelos para ser o narrador da cantata de John Peterson.
Este narrador lembrou, com muita ênfase, que “o Mestre repreendeu os excessos do povo, dizendo que o templo era uma casa de oração” (ver: OJB, 30 maio 1976).
O pastor Éber Vasconcelos foi um excelente narrador. Para transmitir integralmente a mensagem da cantata, possuía ótima dicção e um nítido senso de pronunciação das palavras. Para interpretar uma cena, manifestava sua expressivida Assim, reforçou a voz, ao referir-se ao Tentador (trecho no.2, A Tentação) e ao dirigir-se ao Traidor (no. 8, A Crucificação).
O narrador de uma cantata ou de um oratório usa a voz, nunca a mímica ou a gesticulação; aquelas formas de música religiosa não se prestam à pantomima.
Pelo visto, o tenor, para exercer a função de narrador deve ser uma pessoa sensível, emocional e espiritualmente.
De certo modo, o narrador orienta o solista e o coro, no canto da ária, do recitativo ou do trecho coral que lhe cabe, no decorrer da narrativa cantada para a inteligente execução da obra musical.
A voz do narrador, sem esquecer a sua postura, é o barômetro de suas condições físicas, emocionais e mentais. O tom da voz informa o seu estado de atenção e compreensão do texto. A voz tem velocidade (num texto dramático) e medida (num texto que pede reflexão), por isso exige do narrador que lhe preste atenção. O narrador influencia a participação do solista e do coro para entoarem o canto como um ato de adoração
Foi o que fez o pastor Éber durante a execução.
O diácono Esdras Alves Rocha Queiroz era outro narrador que apreciávamos nos concertos corais apresentados na Memorial; ele atuou competentemente nas cantatas “Maior Amor” e “Celebração da Esperança”.
Esdras poderia ter sido aproveitado em espetáculos teatrais levados a sério.
Para apresentar-se bem usou seu conhecimento da arte teatral adquirido com Paschoal Carlos Magno (que tinha fundado o Teatro e a Casa do Estudante do Brasil) e sua experiência em peças teatrais (por exemplo, “Édipo Rei”, de Shakespeare, no papel de “Hamlet”), montadas por estudantes na cidade de Londrina (PR).
Na década de 50, assistimos a alguns espetáculos orientados por Paschoal (1906-1980) e à encenação dos livros “Em Seus passos, que faria Jesus?” e “A crucificação de Felipe Strong”, de Charles Sheldon, numa igreja batista carioca, cuja renda beneficiou o Ginásio Batista de Tocantínia (então no estado de Goiás).
Os interessados na arte teatral de cunho cristão evangélico podem procurar na Internet os “scripts” de Warren Sager, examinar seus textos e encená-los, desde que não contenham heresias, em suas respectivas igrejas.
No momento, não lembramos de algum teatrólogo batista brasileiro.
Nas cantatas que serão executadas no fim deste mês de março os ministros de música devem prestigiar os narradores, mas orientá-los neste importante ofício.
(Publicado em “O Jornal Batista”, de 04 de março de 2018)