Doc.JB-727
Rolando de Nassáu
(Dedicado ao leitor Édsom da Silva Leite, de Brasília, DF)
Para registrar uma execução musical, em filme ou vídeo, deve-se levar em conta, pelo menos, o tipo (recital ou concerto), os executantes (solistas, coro ou conjunto instrumental), o local (templo, sala de concertos ou estádio) e o fundo cênico (objetos, cortina, parede lisa ou com dizeres) da referida execução.
O cinegrafista escolherá o ângulo em que sua câmera deve ser postada ou movimentada, e se a gravação será colorida ou em preto-e-branco. Para obter o enquadramento da imagem, cada posição da câmera (“shot”) tem um diferente propósito e efeito; o “close-up” pode revelar algo de uma pessoa. O relacionamento entre a câmera e o objeto sendo fotografado dá informação e guia o julgamento a respeito do personagem ou do objeto.
O “cameraman” pode usar uma série de cortes, indo com a câmera de uma posição para outra, ou movimentar a câmera, colocada sobre um tripé, ou usar lentes de “zoom” (ver: Bordwell, David. “Film Art: An Introduction”. New York: Mc Graw Hill, 1993).
Na década de 60, o trabalho do cinegrafista era restrito, por motivos tecnológicos ou estéticos; ele tinha poucos ângulos para focalizar uma imagem. Naquela época, a música era considerada auto-suficiente; quanto menos fossem usados recursos visuais tanto melhor. A ausência de movimentos de câmera ou de lentes de “zoom”, que produzem o efeito visual de afastamento ou aproximação, permite ao espectador concentrar-se inteiramente no sentimento poético, no virtuosismo técnico e na finura estética do intérprete. O cinegrafista deve favorecer a atmosfera na qual o artista pode desenvolver-se e dar realce à sua arte.
Assistindo, em preto-e-branco, um DVD lançado em 2002, mas baseado num filme gravado em 1966 com o pianista ucraniano Sviatoslav Richter (1915-1997), que interpretava as “Variations sérieuses”, de Mendelssohn, observamos que durante 10 minutos a câmera usou, na maior parte desse tempo, o ângulo lateral.
Nas “Variações sérias”, pudemos apreciar o toque mágico e elegante, ao mesmo tempo objetivo e enérgico, com que Richter criou uma atmosfera inesquecível; no DVD só aparecem o piano e o pianista.
Nesse mesmo DVD, Richter acompanhou o violoncelista russo Mstislav Rostropovich (1927-2007) na execução, gravada no Festival de Edinburgh de 1964, de cinco sonatas de Beethoven. Pode-se perceber, então, a intensa relação artística entre Richter e Rostropovich; um adivinha o que o outro fará; Richter volta-se, para num relance observar as arcadas de Rostropovich, mas a linguagem corporal está subordinada à comunhão mental; Rostropovich inclina-se para o piano, querendo extrair do violoncelo a necessária ênfase expressiva; cada um extravazando sua tensão emocional: Richter dando saltos na cadeira, Rostropovich exibindo contrações da mandíbula e movimentos de cabeça; às vezes, não há necessidade de olhares e gestos. Graças ao DVD, pudemos ouvir e ver o diálogo. Mas há um detalhe que prejudica: durante todo o concerto, pode-se ver a bainha da calça preta e a meia branca de um assistente, e o bico do sapato de uma mulher apontando para o queixo de Richter …
Em certas circunstâncias, preferimos o áudio de um CD ao vídeo de um DVD; para nós, o som é mais importante que a imagem do músico.
Em 1981, com o pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) enclausurado no estúdio, foram gravadas num filme as “Variações Goldberg”, de Bach; a mesma economia de movimentos da câmera permite observar uma soberba técnica pianística; o cinegrafista focalizou apenas a firme estrutura do piano e as esquisitices do pianista.
Herbert von Karajan regeu, em 1985, a sinfonia “Do Novo Mundo”, de Dvorak; no CD aparecem, quase sempre, em cores, a face enigmática do regente e os olhares atentos dos músicos.
No DVD com o “Réquiem”, de Verdi, sob a batuta de Enoch zu Guttenberg, em 1990, foi usado o recurso carismático de ressaltar as expressões faciais do regente, talvez por ser um ilustre desconhecido.
Em 2005, Gilbert Levine gravou a “Missa Solene”, de Beethoven; o cinegrafista preocupou-se em filmar o templo, por dentro e por fora, o teto, as colunas e o piso da portentosa catedral de Colônia (Alemanha), para agradar aos apreciadores de música clássica e arquitetura gótica …
Desde a década de 90, os cinegrafistas têm revelado a tendência de focalizar aspectos extra-musicais: o local do concerto, os instrumentos exóticos, os assistentes etc.
Certa vez, bem antes do início de um concerto, sentamos ao lado de um cinegrafista; ansioso para começar o seu trabalho, ele tinha em mãos um roteiro com indicações relativas às imagens a serem registradas; informou-nos que sua missão era captar as expressões faciais dos assistentes do concerto; nosso conselho foi que aguardasse o início real do concerto, até que o público estivesse todo acomodado em seus lugares; porque o DVD, para seu espanto, poderia mostrar, quando estivesse pronto, cenas inconvenientes: pessoas conversando, mastigando, gargalhando, acenando, praguejando ou fazendo caretas para o cinegrafista …
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(Publicado em “O Jornal Batista”, 06 abr 08, p. 4).